Texto escrito
por Agenor Portelli Magalhães
FUI PRESO,
TORTURADO E HUMILHADO, Memórias de um ex-esquerdista
2005
Iniciava-se o ano de 1964. Eu havia colado grau no
final de 1963.
Enquanto procurava emprego reunia-me com os colegas
da faculdade para discutirmos o mercado de trabalho e os rumos do país.
Estávamos uma noite no Chalé, na praia de Icaraí,
bar cult da época. Já havíamos
entornado vários copos de chope quando
encosta o camburão do DOPS.
Havia muita tensão na época, os diretórios
acadêmicos dominados pelos comunistas, comunistas esses que eu ajudara a
colocar lá quando ainda na faculdade, greves de sindicatos, comícios contra o
capitalismo e o escambau à quatro. João Goulart não tinha mais o controle
institucional do país. Era uma anarquia geral. Mandavam os sindicatos, também nas mãos dos
comunistas, enquanto nas forças armadas o Almirante Aragão insuflava os marinheiros à rebelião,
subvertendo a hierarquia, tão cara aos militares. As ligas camponesas de
Francisco Julião a avançar sobre propriedades privadas em ação nefasta tal qual o MST
de hoje.
Os policiais desceram do camburão e começaram a
pedir documentos nas outras mesas. Estava com um mau pressentimento. Chegou a
nossa vez e, um primo de Heloisa resolveu desafiar os policiais negando-se a
entregar o documento de identidade que ele tinha, afirmando que como estudante podia portar tão somente a dita carteira de
estudante. Aporrinhado, o policial dirigiu-se a mim, único a não puxar documento do bolso. Disse que não tinha
documento nenhum, que nunca levava comigo para não perder e que não era exigível em vista a
Constituição do país. Não deu certo, disse que eu estava preso. Entrei no
camburão e eles começaram a rodar por Niterói. Pararam numa esquina onde tinha
um grupo falando alto. Pedi a Deus que eles prendessem alguém para eu ter
companhia no xadrez. Nada, foram em frente, cochichando o tempo todo. Tinha a
certeza que iam me desovar em um lixão qualquer. Um deles voltou-se para mim e
perguntou o que eu fazia. Disse que era
engenheiro. Naquela época diploma universitário valia muito. Sussurraram
qualquer coisa de novo e percebi que meu destino estava selado. Eles sabiam que
uma vez solto eu ia denunciá-los por
arbitrariedade. Senti-me torturado psicologicamente, o tempo não passava,
pareciam horas intermináveis, embora apenas 25 minutos tivessem decorrido desde
a minha detenção. Para minha humilhação
total, deixaram-me em
plena Praia de Icaraí, na frente de uma multidão de
transeuntes. Desci na maior cara de pau assoviando desafinado, pois o
nervosismo fez minha boca ficar torta. Dei um aceno para os policiais para
fingir que eram meus conhecidos. Não colou, os transeuntes olhavam para mim
como se eu fosse um malfeitor, no mínimo mais um subversivo ou moleque que aprontara
alguma. Corri para casa, peguei todos os
documentos que tinha e voltei para o Chalé onde encontrei a turma toda lá.
Indignado, pois eles não demonstravam nem estar aí, fui logo empombando. P...
da vida, perguntei porque não foram me libertar no DOPS. Estivemos lá, -
responderam -, mas nos informaram que não havia ninguém preso. Voltamos para te
esperar aqui. Seu chope já está esquentando, beba logo.
Passaram-se 40 anos.
Com a farra que a Secretaria de Direitos Humanos
está fazendo com o dinheiro do povo, resolvi
saber como me habilitar a uma indenização e aposentadoria. Afinal eu fora
preso e o jornalista Cony apenas perdera um emprego. Na minha avaliação, a meia
hora que passei preso entre a vida e a morte valia mais que o emprego do Cony.
Por telefone expliquei em detalhes o meu caso.
Disseram que eu não me enquadrava na lei da anistia. Que eu fui preso no governo do João Goulart e não valia. Só no
período entre o inicio da ditadura e a promulgação da lei da anistia. Quiseram
saber se eu fui anistiado. - De que, perguntei? – O senhor não seqüestrou, não matou, não guerreou, não
fugiu para outro país? – Não, nada
disso, respondi. – Sua ficha no DOPS está limpa, me perguntaram? -Limpíssima,
respondi. - Então não vale, para receber
indenização a ficha do DOPS tem que ser suja e quanto mais extensa melhor,
detalhando sua atividade subversiva.
Parece que não é o seu caso, responderam-me desolados.
Meu sonho de uma velhice tranqüila morreu por aí.
Maldita ficha do DOPS!
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