segunda-feira, 16 de julho de 2012

Bolero...

                                  Autor:  José Cunha Filho
             Calor.
            Os dedos gastos no teclado repetem sinais que ninguém vê. Sombras nascidas do inconsciente, o calor, o calor, a fé cega e faca amolada, amolada...
            Calor.
            Uma caixa repercute baixinho, as ondas crescem, o mar se espraia... Longe.
          Voltar à rotina, ao batucar das teclas, preto no branco, branco na preta, preta no branco, loura paixão, louca paixão...
            Ravel? Paranóia? Paratudoparaparapreparadopara? Sair, voltar?
            Calor.
         A sala é a sua sala, mas não é mais a sua sala, a sua mesa não é a sua mesa, a mulher na cadeira que é e não é a sua, sorri sem jeito, sem vontade...
          - Como?
         Olha em volta, tudo igual e tudo diferente, o ar é o mesmo, as coisas não. Há gente e seus amigos, onde estão? Gente e não pessoas, a individualidade se esfuma em solo de sax e retinir de caixas e címbalos...
            - Onde estão todos?
            - O senhor está bem? Quer um copo de água?
      - Saí agorinha mesmo pra tomar um café e não sei mais onde estão todos. Enlouqueci?
            - O senhor nunca esteve aqui antes, nunca esteve, nunca esteve, nunca esteve...
            - Quebrou o disco, o CD sei lá o quê, quem é você?
            - Aqui ainda não é o seu lugar, o senhor não é daqui!
            A caixa retine, os trombones surgem, graves, o calor, o calor...
            Violinos gemem, caixa repercute, batem címbalos, rapsódia eterna e onde estão os meus amigos, a minha casa, o meu trabalho, a minha vida?
            - Atravessou o portal?
            A mocinha de branco diz que não, ainda sentada à mesa que já não guarda mais a minha memória, a minha saudade, os meus anos dourados, a rapsódia amplia a resposta com novos instrumentos, mais altos, mais graves, mais e mais calor e, de repente, não muito mais que súbito e cristalino, o fim.
            Quando? Como? Pôr que?
            Passar pelo tempo e só?
            Todos juntos agora.
            Scherzo? Vibrato!

Atenção:

Scherzo = gênero musical; sonata ou sinfonia; quartetos de corda.

Vibrato= voz encaixada. Técnica utilizada pelos cantores para prolongar a nota e o conforto potência.

Um comentário:

  1. José Cunha é um grande escritor!
    Quanta sensibilidade para descrever as sensações humanas!... A gente pode perceber isso, nos seus diversos textos.
    Em alguns, ele revela a sensação provocada, ou melhor, originada, pela razão - já que as religiões cristãs colocam a razão como exteriorização do espírito. Se pensarmos bem, pode ser assim.
    Mas Rousseau, por exemplo, evidencia tanto a natureza, os sentimentos, como fonte de nossas evocações mais sublimes!... Se nos envolvermos bem, pode ser assim também.
    Neste texto, tão forte e belo, como o furor dos nossos sentimentos mais uterinos, o autor nos embala para um pódio, aquele que a música nos enleva, nos seqüestra e nos envolve para o além de um mundo ligado ao aqui e ao agora. E isso, se nos contagiarmos bem, também pode ser assim.
    Um abraço no José Cunha Filho - não estou me lembrando de conhecê-lo, pessoalmente. Mas agradeça a ele, por nos brindar com seu talento.

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