Autor: José Cunha Filho
Calor.
Os dedos gastos no teclado repetem sinais que ninguém vê. Sombras nascidas do
inconsciente, o calor, o calor, a fé cega e faca amolada, amolada...
Calor.
Uma caixa repercute baixinho, as ondas crescem, o mar se espraia... Longe.
Voltar à rotina,
ao batucar das teclas, preto no branco, branco na preta, preta no branco, loura
paixão, louca paixão...
Ravel? Paranóia? Paratudoparaparapreparadopara? Sair, voltar?
Calor.
A sala é a sua
sala, mas não é mais a sua sala, a sua mesa não é a sua mesa, a mulher na
cadeira que é e não é a sua, sorri sem jeito, sem vontade...
- Como?
Olha em volta,
tudo igual e tudo diferente, o ar é o mesmo, as coisas não. Há gente e seus
amigos, onde estão? Gente e não pessoas, a individualidade se esfuma em solo de
sax e retinir de caixas e címbalos...
- Onde estão todos?
- O senhor está bem? Quer um copo de água?
- Saí agorinha mesmo pra tomar
um café e não sei mais onde estão todos. Enlouqueci?
- O senhor nunca esteve aqui antes, nunca esteve, nunca esteve, nunca esteve...
- Quebrou o disco, o CD sei lá o quê, quem é você?
- Aqui ainda não é o seu lugar, o senhor não é daqui!
A caixa retine, os trombones surgem, graves, o calor, o calor...
Violinos gemem, caixa repercute, batem címbalos, rapsódia eterna e onde estão
os meus amigos, a minha casa, o meu trabalho, a minha vida?
- Atravessou o portal?
A mocinha de branco diz que não, ainda sentada à mesa que já não guarda mais a
minha memória, a minha saudade, os meus anos dourados, a rapsódia amplia a
resposta com novos instrumentos, mais altos, mais graves, mais e mais calor e,
de repente, não muito mais que súbito e cristalino, o fim.
Quando? Como? Pôr que?
Passar pelo tempo e só?
Todos juntos agora.
Scherzo? Vibrato!
Atenção:
Scherzo = gênero musical; sonata ou sinfonia; quartetos de
corda.
Vibrato= voz encaixada. Técnica utilizada pelos cantores
para prolongar a nota e o conforto potência.
José Cunha é um grande escritor!
ResponderExcluirQuanta sensibilidade para descrever as sensações humanas!... A gente pode perceber isso, nos seus diversos textos.
Em alguns, ele revela a sensação provocada, ou melhor, originada, pela razão - já que as religiões cristãs colocam a razão como exteriorização do espírito. Se pensarmos bem, pode ser assim.
Mas Rousseau, por exemplo, evidencia tanto a natureza, os sentimentos, como fonte de nossas evocações mais sublimes!... Se nos envolvermos bem, pode ser assim também.
Neste texto, tão forte e belo, como o furor dos nossos sentimentos mais uterinos, o autor nos embala para um pódio, aquele que a música nos enleva, nos seqüestra e nos envolve para o além de um mundo ligado ao aqui e ao agora. E isso, se nos contagiarmos bem, também pode ser assim.
Um abraço no José Cunha Filho - não estou me lembrando de conhecê-lo, pessoalmente. Mas agradeça a ele, por nos brindar com seu talento.