sábado, 19 de maio de 2012

O Liceu do Meu Tempo


O tempo em que minha geração estudou no Liceu de Humanidades de Campos foi o dos anos sessenta, período marcado por importantes acontecimentos na vida nacional e pela fase mais saudosa de nossa juventude.
No início da década de sessenta, o governo de Juscelino Kubitschek realizava transformações de grande alcance na área econômica. A fundação de Brasília, como a nova capital do país, representou um plano ambicioso e ousado, gerando contundentes críticas pelo endividamento e pela transferência estratégica do foco do poder para a região central do país. Contudo, a obra majestosa de Oscar Niemeyer continua ostentando do alto do planalto novos conceitos e formas de beleza na arquitetura moderna.
Em Campos dos Goytacazes, o conjunto histórico arquitetônico formado pelo Liceu, pelo Fórum e pela Vila Maria, representando um passado de poder e riqueza, era um dos mais apreciados locais da cidade. Entre esses prédios, um jardim bucólico, sem grades, com coretos e bancos pitorescos, acolhia os namorados que passeavam sob a sombra das palmeiras imperiais.
Vivíamos uma época de romantismo nos bailes glamourosos do Automóvel Clube e do Saldanha da Gama, nas serenatas às janelas das moças enamoradas e nos hi-fi domingueiros das casas de famílias. Tudo embalado pelo sabor de cuba-libre e do piano de Anoeli tocando Imagine, de John Lenon, e Com açúcar e com afeto, de Chico Buarque.

A eleição de Jânio Quadros, em 1961, para a presidência da República, agitou o cotidiano da população, que se empolgava pelo seu carisma e confiava nas suas promessas de que varreria a corrupção do país.
Poucos meses depois, a renúncia de Jânio Quadros gerou uma crise política. Em Campos, os homens discutiam a situação política do país em pequenos grupos no centro, na chamada Rua dos Homens em Pé.
Assumiu o vice-presidente João Goulart, num clima de hostilidade e crescente desgaste do seu governo.
Na Rua dos Homens em Pé, a conversa nas rodinhas eram inflamadas.
Os adolescentes viviam em outro mundo. Depois de ser aprovado no Exame de Admissão para o Liceu, a segunda vitória era vestir o uniforme e entrar pela primeira vez no colégio que tinha padrão de excelência, só comparado ao Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.
A Parada de Bichos era um evento criado por alunos de gerações passadas e que se repetia anualmente, quando os alunos veteranos aplicavam os mais inusitados trotes nos calouros. Funcionava como uma espécie de batismo. Depois de passar pelo calvário do trote, podia-se então ser considerado um liceísta. Pintados e sujos, os calouros desfilavam pelos quarteirões das redondezas do Liceu.
A formação que recebíamos no Liceu seria para o resto de nossas vidas um alicerce seguro. Quem há de esquecer daqueles professores e de suas aulas?  As de Português, do simpático Prof. Roberto Wilson Fernandes e da competente Prof. Ariema; as de Inglês, da elegante Prof. Leda Diniz; as de História, da brilhante Prof. Maria Rita e da rigorosa Prof. Marina; as de Ciência, da mãezona Prof. Evangelina Guedes; as de Matemática, da inteligente Prof. Isa Sodré e as de tantos outros ilustres mestres do Liceu daquele tempo inesquecível, quando não havia internet e nós saciávamos nossa sede de saber através dos livros e das enciclopédias.
Quando tocava a campainha do intervalo para o recreio, dirigíamos para o Jardim do Liceu e ali dávamos vazão às fantasias, iniciávamos os namoros e os flertes. Ao término das aulas, retornávamos para casa com a mente fervilhando de conhecimentos e o coração pulsando de paixão. Pegávamos o lotação e íamos todos juntos rindo e cantando as músicas das paradas de sucesso: Calhambeque, de Roberto Carlos, Toma um banho de lua, de Cely Campelo...


À tarde, muitos de nós, voltávamos para os ensaios do Coral Juca Chagas, sob a direção da notável maestrina Alcídia Perez Pia e do Conjunto de Percussão Dora Pinto, sob a direção da querida maestrina Evany Medina. 
O ensino do Liceu aliava o conhecimento teórico e a prática em laboratórios à aprendizagem através da arte e da cultura. No Coral de D. Alcídia e no Conjunto de Dona Evany, deixávamos aflorar a emoção. Através do mundo encantado da música e do folclore brasileiro, entramos em contacto com as fascinantes obras de Chiquinha Gonzaga, Villa-Lobos, Ary Barroso e outros. De posse de suas batutas, as professoras - maestras mais pareciam fadas regendo com varinhas de condão os nossos sonhos e fantasias. Elas abriram um horizonte ainda mais amplo em nossas vidas e os repertórios musicais, tantas vezes apresentados em ocasiões especiais, fazem parte até hoje de nossa memória afetivo-musical, onde ressoam: “Os negros trouxeram de longe...”

Em 1962, a seleção brasileira de futebol proporcionou ao Brasil a vitória da Copa do Mundo, fazendo com que milhões de corações explodissem de euforia com o bicampeonato. Uma carreata colorida de verde e amarelo percorreu as ruas de nossa cidade e os campistas saíram às ruas para externar, entre sons de buzina e de fogos, a alegria de ser brasileiro.
Em 1964, um golpe militar depôs o Presidente João Goulart e a partir de então se instalou no país um regime ditatorial que deixou profundas chagas na vida nacional durante duas décadas. Censura, prisões, tortura, repressão e exílio passaram a rondar como espectros no dia-a-dia dos cidadãos brasileiros.
Na nossa pacata Campos, os homens na Rua dos Homens em Pé silenciavam as suas opiniões acerca da política. As vozes emudeceram e as consciências anestesiadas pelo medo refugiaram-se na clandestinidade.        
Enquanto nos grandes centros urbanos do país os estudantes liderados pela UNE protestavam em comícios contra a ditadura, nós, os jovens liceístas de Campos apenas recebíamos notícias vagas e distantes daquela realidade através da imprensa amordaçada. A nossa agremiação estudantil _ a LAECE, não tinha ainda uma participação efetiva nas questões políticas.
Alheios aos acontecimentos políticos, sentíamo-nos seguros e protegidos contra turbulências externas no nosso Liceu sob a direção de Dr. João da Hora, sempre bonachão, em seu costumeiro terno branco, recebendo os alunos diariamente com um sorriso e uma palavra carinhosa. Tacinho, o coordenador de disciplina, mais zelava pelos alunos do que os disciplinava. Lívio Tavares cuidava da portaria e ali reinavam a liberdade e a paz. Com a morte do estimado diretor, assumiu a direção o Prof. Paes da Cunha que manteve o mesmo ambiente de harmonia e respeito entre todos. Sua gestão dinâmica trouxe para o colégio importantes melhoramentos, mas jamais o Liceu perdeu sua filosofia humanitária e libertária.
Nos desfiles de 7 de setembro, o Liceu era a escola mais esperada pela população que se aglomerava atrás do cordão de isolamento da Av. Alberto Torres. Nosso destaque não era apenas pela afinada banda marcial, nem pela cadência bem ensaiada da marcha dos alunos em uniforme de gala e nem pela galhardia dos pelotões da cavalaria, das bicicletas e das bandeiras. Nós nos destacávamos dentre todos porque marchávamos com orgulho de sermos liceístas.
No antigo Solar do Barão da Lagoa Dourada era possível sonhar naqueles tempos ainda que fossem anos de chumbo lá fora. Na segunda metade da década de sessenta, tomamos rumos diversos. Alguns alunos permaneceram cursando o Clássico ou o Científico, outros ingressaram no Curso Normal do Instituto de Educação. A separação dos colegas e do amado colégio foi cruel e irremediável. Seguimos nossas vidas em outras instituições, em cidades e estados diferentes, carregando em nosso íntimo a certeza de que nada seria como o Liceu.
Passados cinquenta anos, dispersos por esse país gigantesco, a geração de sessenta, sequiosa de um reencontro como este, traz ainda, e para sempre, na retina, lembranças dos seus doze, treze, quatorze e quinze anos de idade passados nas salas de aula, no salão nobre, no mirante, no pátio e nos corredores do antigo casarão transformado em templo do saber. Mas, sobretudo, os sessentões de hoje trazem em seus corações um sentimento único que não tem nome nos dicionários – o liceísmo. Este sentimento se revela nas estrelas que há nos olhos daqueles que foram ou são liceístas e no Hino ao Liceu, de autoria de Alcídia Perez Pia:
“Na planície goitacá
De tão grande tradição
Representa o Liceu
um padrão na educação
Liceístas, sempre avante
Pela glória do Liceu
Que evocamos com orgulho
Ó Liceu! Liceu! Liceu!
Grandes vultos o Liceu
Ao Brasil já pode dar
São exemplos a seguir
Para nossa terra honrar
Entoemos com amor
Nosso hino ao Liceu
Por aquilo que fará
Pelo muito que já deu”.

 

          Vera Lucia Magalhães de Araujo



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