O tempo em que minha geração
estudou no Liceu de Humanidades de Campos foi o dos anos sessenta, período
marcado por importantes acontecimentos na vida nacional e pela fase mais
saudosa de nossa juventude.
No início da década de sessenta, o
governo de Juscelino Kubitschek realizava transformações de grande alcance na
área econômica. A fundação de Brasília, como a nova capital do país,
representou um plano ambicioso e ousado, gerando contundentes críticas pelo
endividamento e pela transferência estratégica do foco do poder para a região
central do país. Contudo, a obra majestosa de Oscar Niemeyer continua
ostentando do alto do planalto novos conceitos e formas de beleza na
arquitetura moderna.
Em Campos dos Goytacazes, o
conjunto histórico arquitetônico formado pelo Liceu, pelo Fórum e pela Vila
Maria, representando um passado de poder e riqueza, era um dos mais apreciados
locais da cidade. Entre esses prédios, um jardim bucólico, sem grades, com
coretos e bancos pitorescos, acolhia os namorados que passeavam sob a sombra
das palmeiras imperiais.
Vivíamos uma época de romantismo
nos bailes glamourosos do Automóvel Clube e do Saldanha da Gama, nas serenatas
às janelas das moças enamoradas e nos hi-fi
domingueiros das casas de famílias. Tudo embalado pelo sabor de cuba-libre e do
piano de Anoeli tocando Imagine, de
John Lenon, e Com açúcar e com afeto,
de Chico Buarque.
A eleição de Jânio Quadros, em
1961, para a presidência da República, agitou o cotidiano da população, que se
empolgava pelo seu carisma e confiava nas suas promessas de que varreria a
corrupção do país.
Poucos meses depois, a renúncia de
Jânio Quadros gerou uma crise política. Em Campos, os homens discutiam a
situação política do país em pequenos grupos no centro, na chamada Rua dos
Homens em Pé.
Assumiu o vice-presidente João
Goulart, num clima de hostilidade e crescente desgaste do seu governo.
Na Rua dos Homens em Pé, a conversa
nas rodinhas eram inflamadas.
Os adolescentes viviam em outro
mundo. Depois de ser aprovado no Exame de Admissão para o Liceu, a segunda
vitória era vestir o uniforme e entrar pela primeira vez no colégio que tinha
padrão de excelência, só comparado ao Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.
A Parada de Bichos era um evento
criado por alunos de gerações passadas e que se repetia anualmente, quando os
alunos veteranos aplicavam os mais inusitados trotes nos calouros. Funcionava
como uma espécie de batismo. Depois de passar pelo calvário do trote, podia-se
então ser considerado um liceísta. Pintados e sujos, os calouros desfilavam
pelos quarteirões das redondezas do Liceu.
A formação que recebíamos no Liceu
seria para o resto de nossas vidas um alicerce seguro. Quem há de esquecer
daqueles professores e de suas aulas? As
de Português, do simpático Prof. Roberto Wilson Fernandes e da competente Prof.
Ariema; as de Inglês, da elegante Prof. Leda Diniz; as de História, da
brilhante Prof. Maria Rita e da rigorosa Prof. Marina; as de Ciência, da
mãezona Prof. Evangelina Guedes; as de Matemática, da inteligente Prof. Isa
Sodré e as de tantos outros ilustres mestres do Liceu daquele tempo
inesquecível, quando não havia internet
e nós saciávamos nossa sede de saber através dos livros e das enciclopédias.
Quando tocava a campainha do
intervalo para o recreio, dirigíamos para o Jardim do Liceu e ali dávamos vazão
às fantasias, iniciávamos os namoros e os flertes. Ao término das aulas,
retornávamos para casa com a mente fervilhando de conhecimentos e o coração
pulsando de paixão. Pegávamos o lotação e íamos todos juntos rindo e cantando
as músicas das paradas de sucesso: Calhambeque,
de Roberto Carlos, Toma um banho de lua,
de Cely Campelo...
À tarde, muitos de nós, voltávamos
para os ensaios do Coral Juca Chagas, sob a direção da notável maestrina
Alcídia Perez Pia e do Conjunto de Percussão Dora Pinto, sob a direção da
querida maestrina Evany Medina.
O ensino do Liceu aliava o
conhecimento teórico e a prática em laboratórios à aprendizagem através da arte
e da cultura. No Coral de D. Alcídia e no Conjunto de Dona Evany, deixávamos
aflorar a emoção. Através do mundo encantado da música e do folclore
brasileiro, entramos em contacto com as fascinantes obras de Chiquinha Gonzaga,
Villa-Lobos, Ary Barroso e outros. De posse de suas batutas, as professoras -
maestras mais pareciam fadas regendo com varinhas de condão os nossos sonhos e
fantasias. Elas abriram um horizonte ainda mais amplo em nossas vidas e os
repertórios musicais, tantas vezes apresentados em ocasiões especiais, fazem
parte até hoje de nossa memória afetivo-musical, onde ressoam: “Os negros trouxeram de longe...”
Em 1962, a seleção brasileira de
futebol proporcionou ao Brasil a vitória da Copa do Mundo, fazendo com que
milhões de corações explodissem de euforia com o bicampeonato. Uma carreata
colorida de verde e amarelo percorreu as ruas de nossa cidade e os campistas
saíram às ruas para externar, entre sons de buzina e de fogos, a alegria de ser
brasileiro.
Em 1964, um golpe militar depôs o
Presidente João Goulart e a partir de então se instalou no país um regime
ditatorial que deixou profundas chagas na vida nacional durante duas décadas.
Censura, prisões, tortura, repressão e exílio passaram a rondar como espectros
no dia-a-dia dos cidadãos brasileiros.
Na nossa pacata Campos, os homens
na Rua dos Homens em Pé silenciavam as suas opiniões acerca da política. As
vozes emudeceram e as consciências anestesiadas pelo medo refugiaram-se na
clandestinidade.
Enquanto nos grandes centros
urbanos do país os estudantes liderados pela UNE protestavam em comícios contra
a ditadura, nós, os jovens liceístas de Campos apenas recebíamos notícias vagas
e distantes daquela realidade através da imprensa amordaçada. A nossa
agremiação estudantil _ a LAECE, não tinha ainda uma participação efetiva nas
questões políticas.
Alheios aos acontecimentos
políticos, sentíamo-nos seguros e protegidos contra turbulências externas no
nosso Liceu sob a direção de Dr. João da Hora, sempre bonachão, em seu
costumeiro terno branco, recebendo os alunos diariamente com um sorriso e uma
palavra carinhosa. Tacinho, o coordenador de disciplina, mais zelava pelos
alunos do que os disciplinava. Lívio Tavares cuidava da portaria e ali reinavam
a liberdade e a paz. Com a morte do estimado diretor, assumiu a direção o Prof.
Paes da Cunha que manteve o mesmo ambiente de harmonia e respeito entre todos.
Sua gestão dinâmica trouxe para o colégio importantes melhoramentos, mas jamais
o Liceu perdeu sua filosofia humanitária e libertária.
Nos desfiles de 7 de setembro, o
Liceu era a escola mais esperada pela população que se aglomerava atrás do
cordão de isolamento da Av. Alberto Torres. Nosso destaque não era apenas pela
afinada banda marcial, nem pela cadência bem ensaiada da marcha dos alunos em
uniforme de gala e nem pela galhardia dos pelotões da cavalaria, das bicicletas
e das bandeiras. Nós nos destacávamos dentre todos porque marchávamos com
orgulho de sermos liceístas.
No antigo Solar do Barão da Lagoa
Dourada era possível sonhar naqueles tempos ainda que fossem anos de chumbo lá
fora. Na segunda metade da década de sessenta, tomamos rumos diversos. Alguns
alunos permaneceram cursando o Clássico ou o Científico, outros ingressaram no
Curso Normal do Instituto de Educação. A separação dos colegas e do amado
colégio foi cruel e irremediável. Seguimos nossas vidas em outras instituições,
em cidades e estados diferentes, carregando em nosso íntimo a certeza de que
nada seria como o Liceu.
Passados cinquenta anos, dispersos
por esse país gigantesco, a geração de sessenta, sequiosa de um reencontro como
este, traz ainda, e para sempre, na retina, lembranças dos seus doze, treze,
quatorze e quinze anos de idade passados nas salas de aula, no salão nobre, no
mirante, no pátio e nos corredores do antigo casarão transformado em templo do
saber. Mas, sobretudo, os sessentões de hoje trazem em seus corações um
sentimento único que não tem nome nos dicionários – o liceísmo. Este
sentimento se revela nas estrelas que há nos olhos daqueles que foram ou são
liceístas e no Hino ao Liceu, de autoria de Alcídia Perez Pia:
“Na planície
goitacá
De tão grande
tradição
Representa o
Liceu
um padrão na
educação
Liceístas,
sempre avante
Pela glória do
Liceu
Que evocamos com
orgulho
Ó Liceu! Liceu!
Liceu!
Grandes vultos o
Liceu
Ao Brasil já
pode dar
São exemplos a
seguir
Para nossa terra
honrar
Entoemos com
amor
Nosso hino ao
Liceu
Por aquilo que
fará
Pelo muito que
já deu”.
Vera
Lucia Magalhães de Araujo
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