Texto escrito por Reinaldo Azevedo, colaboração para o blog de Lúcia Marina Galvão de Queirós
A Igreja de Francisco I, o jesuíta, está profundamente comprometida com
os pobres e com os que me mais sofrem, mas também com a doutrina
Abaixo, reproduzo o texto de autoria de John Allen
Jr., jornalista do site americano National Catholic Reporter (http://ncronline.org/). Ele
fez um perfil de todos os papáveis. Seu texto sobre Jorge Mario Bergoglio,
publicado no dia 10 deste mês, é excelente. Lembra, entre outras coisas, que o
então arcebispo de Buenos Aires foi alvo da fúria de Cristina Kirchner por ter
criticado a lei que permite a adoção por homossexuais — segundo ele, uma forma
de discriminação contra as crianças. A presidente da Argentina o acusou de
cultivar preconceitos medievais. Também no que diz respeito ao aborto e à
contracepção, o papa Francisco I é um fiel seguidor da orientação oficial da
Igreja.
Enquanto não há pesquisas de opinião para estabelecer quem tem mais musculatura
como candidato ao papado, o conclave de 2013 tem pelo menos uma medida objetiva
a mais que o de 2005: o desempenho anterior. Muitos dos cardeais vistos como
candidatos agora estavam também disponíveis da última vez, e alguém que teve
força há oito anos poderia ser um competidor novamente. Por essa medida
isolada, o cardeal Jorge Mario Bergoglio, de Buenos Aires (Argentina), merece
alguma atenção.
Depois que a poeira da eleição de Bento XVI
assentou, vários repórteres identificaram o jesuíta argentino como o principal
desafiante do então cardeal Joseph Ratzinger. Um eleitor disse, depois, que o
conclave teve “um quê de corrida de cavalos” entre Ratzinger e Bergoglio, e um
diário anônimo do conclave que circulava entre a mídia italiana em setembro de
2005 indicava que Bergoglio chegou a receber 40 votos na terceira votação, a
que ocorreu imediatamente antes daquela em que Ratzinger cruzou a linha dos
dois terços e se tornou papa. Embora seja difícil dizer o quanto se pode levar
isso a sério, o consenso geral é de que Bergoglio foi realmente um candidato de
peso no último conclave. Ele chamou a atenção dos ortodoxos do Colégio de
Cardeais como um homem que conseguiu segurar os avanços das correntes liberais
entre os jesuítas, enquanto para os moderados era um símbolo do compromisso da
Igreja com o mundo em desenvolvimento.
Ainda em 2005, Bergoglio marcou muitos pontos como
um intelectual dedicado, que estudou teologia na Alemanha. Seu papel de
liderança durante a crise econômica argentina deu polimento à sua reputação de
ser a voz da ponderação e fez dele um potente símbolo do que os custos da
globalização podem representar para o mundo pobre. A proverbial simplicidade
pessoal também exerceu inegável atração – é um príncipe da Igreja que escolheu
viver em um apartamento simples em vez de habitar um palácio episcopal, que abriu
mão da limusine com motorista e prefere usar o transporte público, e que
cozinha suas próprias refeições.
Outra medida da seriedade de Bergoglio como
candidato é a campanha negativa feita em torno dele há oito anos. Três dias
antes da abertura do conclave de 2005, um advogado argentino da área de
direitos humanos entrou com uma ação em que Bergoglio era apontado como
cúmplice no sequestro de dois padres jesuítas, em 1976, sob o regime militar
que então vigorava no país. Bergoglio negou terminantemente a acusação. Houve
também uma campanha por e-mail, que parece ter sido orquestrada pelos confrades
jesuítas que conheciam Bergoglio dos tempos em que ele foi provincial da ordem
na Argentina. Segundo a campanha, “ele jamais sorria”.
Dito isso tudo, o fato é que Bergoglio
definitivamente esteve sempre no radar. É claro que está oito anos mais velho
agora, e que, aos 76, já está fora da faixa etária que muitos cardeais
consideram ideal. Além disso, o fato de não ter conseguido transpor a barreira
do número de votos necessário da última vez pode convencer alguns cardeais de
que não vale a pena voltar a tentar. Ainda assim, muitas das razões que levaram
membros do colégio a tomá-lo como sério candidato oito anos atrás ainda estão
de pé.
Nascido em Buenos Aires, em 1936, Bergoglio é filho
de um ferroviário que emigrou de Turim, na Itália, para a Argentina, onde teve
cinco filhos. O plano original do cardeal era ser químico, mas, em vez disso,
ele ingressou em 1958 na Companhia de Jesus para começar os estudos preparatórios
para a ordenação sacerdotal. Passou boa parte do início da carreira lecionando
Literatura, Psicologia e Filosofia, e muito cedo era visto como uma estrela em
ascensão. De 1973 a 1979 foi provincial dos jesuítas na Argentina.
Depois disso, em 1980, tornou-se o reitor do
seminário no qual havia se formado. Eram os anos do regime militar na
Argentina, quando muitos sacerdotes, incluindo líderes jesuítas, gravitavam em
torno do movimento progressista da Teologia da Libertação. Como provincial
jesuíta, Bergoglio insistiu em um mergulho mais profundo na tradição espiritual
de Santo Inácio de Loyola, ordenando que os jesuítas continuassem seu trabalho
nas paróquias e atuassem como vigários em vez de se meterem em “comunidades de
base” e ativismo político.
Embora os jesuítas sejam, em geral, desencorajados
de receber honrarias eclesiásticas, especialmente fora de seus países,
Bergoglio foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires em 1992, e depois sucedeu
o adoentado cardeal Antonio Quarracino, em 1998. João Paulo II fez Bergoglio
cardeal em 2001, designando-lhe a igreja romana que leva o nome do lendário
jesuíta São Roberto Belarmino.
Ao longo dos anos, Bergoglio se aproximou tanto do
movimento Comunhão e Libertação, fundado pelo padre italiano Luigi Giussani, que
às vezes discursava no grande encontro anual do grupo, em Rimini, na Itália.
Ele também chegou a divulgar os livros de Giussani em feiras literárias na
Argentina. Isso acabou gerando consternação entre os jesuítas, uma vez que os
ciellini, como são chamados os adeptos do movimento, já eram vistos com os
principais opositores do colega jesuíta de Bergoglio em Milão, o cardeal Carlo
Maria Martini. Por outro lado, isso tudo é parte do apelo de Bergoglio, um
homem que pessoalmente se divide entre os jesuítas e os ciellini e, em maior
escala, entre os reformistas e os ortodoxos da Igreja.
Bergoglio apoiou o ethos de justiça social do
catolicismo latino-americano, inclusive com robusta defesa dos pobres. “Vivemos
na parte mais desigual do mundo, que tem crescido muito, mas que pouco tem
feito para reduzir a miséria”, afirmou ele durante um encontro do episcopado
latino-americano em 2007. “A injusta distribuição de renda persiste, criando
uma situação de pecado social que clama aos céus e que limita as possibilidades
de uma vida plena para muitos de nossos irmãos.” Ao mesmo tempo, ele tende mais
a se empenhar pelo crescimento em graça pessoal do que por reformas
estruturais.
Bergoglio é visto como um ortodoxo inflexível em
matéria de moral sexual e como convicto opositor do aborto, da união
homossexual e da contracepção. Em 2010 ele afirmou que a adoção de crianças por
gays é uma forma de discriminação contra as crianças, o que lhe valeu uma
reprimenda pública por parte da presidente argentina Cristina Kirchner. Ao mesmo
tempo, ele demonstra sempre profunda compaixão pelas vítimas da aids; em 2001,
por exemplo, visitou um sanatório para lavar e beijar os pés de 12 pacientes
soropositivos.
Bergoglio também marca pontos por sua apaixonada
reposta ao atentado a bomba ocorrido em 1994 no prédio de sete andares que
abrigava a Associação Mutual Israelita Argentina, em Buenos Aires. Foi um dos
maiores ataques a alvos judeus já registrados na América Latina e, em 2005, o
rabino Joseph Ehrenkranz, do Centro para a Compreensão Judaico-Cristã, ligado à
Universidade do Sagrado Coração em Fairfield, no estado norte-americano de
Connecticut, louvou a liderança de Bergoglio para superar a dor do episódio.
“Ele estava muito preocupado com o que havia ocorrido”, disse Ehrenkranz. “Tinha
vivido a experiência.”
Apesar disso, depois do conclave de 2005 alguns
cardeais admitiram inocentemente duvidar de que Bergoglio realmente tivesse a
forja e a força necessárias para liderar a Igreja universal. Mais que isso,
para muitos dos não latino-americanos Bergoglio era um número desconhecido. Uns
poucos relembraram de sua liderança no Sínodo de 2001, quando ele substituiu
Edward Egan, de Nova York, como relator do encontro porque o cardeal
norte-americano teve de voltar às pressas para casa para ajudar as vítimas dos
atentados terroristas de 11 de setembro. Naquela ocasião, Bergoglio deixou uma
impressão basicamente positiva, mas pouco marcante.
Bergoglio pode ser fundamentalmente conservador em
muitas questões, mas não é um defensor dos privilégios do clero ou um homem
insensível às realidades pastorais. Em setembro de 2012, ele disparou um ataque
contra os padres que se negavam a batizar crianças nascidas fora do casamento,
classificando a recusa como uma forma de “neoclericalismo rigoroso e hipócrita”.
As chances de Bergoglio em 2013 repousam em quatro
pontos.
O primeiro, e mais básico, é que ele teve grande
apoio da última vez, e alguns cardeais podem pensar em uma nova tentativa
agora.
Segundo, Bergoglio é um candidato que traz consigo
o Primeiro Mundo e o mundo em desenvolvimento. É um latino-americano de raízes
italianas que estudou na Alemanha. Como jesuíta, é integrante de uma comunidade
religiosa internacionalmente confiável, e sua ligação com o movimento Comunhão
e Libertação faz dele parte de outra rede global.
Terceiro, Bergoglio ainda é atraente diante da
usual divisão da Igreja, angariando com seu afiado senso pastoral, sua
inteligência e sua modéstia pessoal o respeito tanto dos ortodoxos quanto dos
moderados. Ele também é visto como uma alma genuinamente espiritualizada e um
homem de profunda oração. “Somente alguém que tenha encontrado a misericórdia,
que tenha sido agraciado com a ternura da misericórdia, está feliz e em paz com
Deus”, disse Bergoglio em 2001. “Eu peço aos teólogos presentes que não me
enviem ao Santo Ofício ou à inquisição; no entanto, forçando um pouco as
coisas, ouso dizer que o lugar privilegiado do encontro é a bondade da
misericórdia de Cristo sobre meus pecados.”
Quarto, ele é também visto como um evangelista bem-sucedido.
“Temos de evitar a doença espiritual de uma Igreja autorreferente”, disse
recentemente. “A verdade é que, quando se sai às ruas, como fazem todos os
homens e mulheres, acidentes acontecem. No entanto, se a Igreja se fechar em si
mesma, se torna ultrapassada. Entre uma Igreja que sofre acidentes lá fora e
outra adoecida pela autorreferência, não tenho dúvidas em preferir a primeira.”
Na contramão, há razões para acreditar que a janela
de oportunidade para Bergoglio alcançar o pontificado já se fechou.
Afinal, ele está oito anos mais velho que em 2005
e, aos 76 , seria apenas dois anos mais jovem do que era Bento XVI quando se
tornou papa. Especialmente nos calcanhares de uma renúncia papal fundamentada
nos problemas da idade e da exaustão, muitos cardeais podem se recusar a eleger
alguém tão idoso por temer que isso exponha a Igreja a um novo choque.
Em segundo lugar, embora fosse um sério concorrente
em 2005, o fato é que ele não conseguiu atrair apoio suficiente para superar a
barreira de dois terços dos votos necessários para a eleição. Especialmente no
que se refere aos 50 cardeais que estiveram presentes no último conclave, o
clima tende a ser de ceticismo quanto à possibilidade de resultados diferentes desta
vez.
Terceiro, as dúvidas sobre a resistência de
Bergoglio espalhadas nos últimos oito anos podem agora ser argumentos ainda
mais corrosivos, dado que a habilidade para governar e manter sob controle a
burocracia vaticana parece ser o item mais importante nas listas dos eleitores.
Embora Bergoglio integre muitos departamentos do Vaticano, inclusive a
Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos e a Congregação
para o Clero, ele nunca trabalhou realmente dentro do Vaticano, e podem surgir
preocupações sobre sua capacidade para controlar o lugar.
Um quarto obstáculo é a ambivalência padrão quanto
aos jesuítas no alto escalão, tanto dentro quanto fora da ordem. Esse pode ter
sido o fator a frear o avanço de Bergoglio da última vez, e nada mudou no
cálculo desde então.
Que Bergoglio se coloca novamente como candidato
parece óbvio. Um escritor italiano, citando um cardeal anônimo, disse, no dia 2
de março, que “quatro anos de Bergoglio seriam suficientes para mudar as
coisas”. Levando em conta seu perfil, no entanto, Bergoglio parece destinado a
cumprir um importante papel neste conclave – se não como rei, será como fazedor
de reis.
Tradução: Maria Sandra Gonçalves
John Allen Jr. é um dos mais
experientes vaticanistas da atualidade. Jornalista do site norte-americano
National Catholic Reporter (http://ncronline.org/), ele também colabora
com o canal de televisão CNN e com a National Public
Radio norte-americana. Allen é autor de vários livros sobre a Igreja
Católica, incluindo duas biografias de Bento XVI, uma delas escrita quando
Joseph Ratzinger ainda era cardeal. Duas de suas obras foram traduzidas para o
português: Opus Dei, mitos e realidade, de 2005, e Conclave,
de 2002, em que ele descreve os rituais que envolvem a sucessão do papa e
apontava vários favoritos para assumir o posto após a morte de João Paulo II.
Por Reinaldo Azevedo