Texto escrito por JOÃO UBALDO
RIBEIRO – Em O Estado de S.Paulo, em 23 de setembro de 2012
Certamente eu descobriria no Google, mas me deu
preguiça de pesquisar e, além disso, não tem importância saber quem inventou
essa palavra grotesca, que agora a gente ouve nos noticiários de televisão e lê
nos jornais. O surpreendente não é a invenção, pois sempre houve besteiras
desse tipo, bastando lembrar os que se empenharam em não jogarmos futebol, mas
ludopédio ou podobálio. O impressionante é a quase universalidade da adoção
dessa palavra (ainda não vi se ela colou em Portugal, mas tenho dúvidas; os portugueses
são bem mais ciosos de nossa língua do que nós), cujo uso parece ter sido
objeto de um decreto imperial e faz pensar em por que não classificamos isso
imediatamente como uma aberração deseducadora, desnecessária e inaceitável,
além de subserviente a ditames saídos não se sabe de que cabeça desmiolada ou
que interesse obscuro. Imagino que temos autonomia para isso e, se não temos,
deveríamos ter, pois jornal, telejornal e radiojornal implicam deveres sérios
em relação à língua. Sua escrita e sua fala são imitadas e tidas como padrão e
essa responsabilidade não pode ser encarada de forma leviana.
Que cretinice é essa? Que quer dizer essa palavra,
cuja formação não tem nada a ver com nossa língua? Faz muitos e muitos anos, o
então ministro do Trabalho, Antônio Magri, usou a palavra "imexível"
e foi gozado a torto e a direito, até porque ele não era bem um intelectual e
era visto como um alvo fácil. Mas, no neologismo que talvez tenha criado,
aplicou perfeitamente as regras de derivação da língua e o vocábulo resultante
não está nada "errado", tanto assim que hoje é encontrado em
dicionários e tem uso corrente. Já o vi empregado muitas vezes, sem alusão ao
ex-ministro. Infutucável, inesculhambável e impaquerável, por exemplo, são
palavras que não se acham no dicionário, mas qualquer falante da língua as
entende, pois estão dentro do espírito da língua, exprimem bem o que se
pretende com seu uso e constituem derivações perfeitamente legítimas.
Por que será que aceitamos sem discutir uma
excrescência como "paralimpíada"? Já li alguns protestos na imprensa
e na internet, mas a experiência insinua que paralimpíada chegou para ficar e
ter seu uso praticamente imposto. Ao contrário dos portugueses, parecemos
encarar nossa língua com desprezo e nem sequer pensamos em como, ao
abastardá-la e ao subordiná-la a padrões e usos estranhos a ela, vamos aos
poucos abdicando até de nossa maneira de ver o mundo e falar dele, nossa
maneira de existir. Talvez isso, no pensar de alguns, seja desejável, mas o
problema é que, por esse caminho, nunca se chegará à identificação com o
colonizador que tanto se admira e inveja, mas, sim, à condição cada vez mais
arraigada de colonizado, que recebe tudo de segunda mão, até suas próprias
opiniões e valores.
Mas há um pequeno consolo em presenciar esse tipo
de vergonheira servil. Consolo meio torto, mas consolo. Refiro-me ao fato de
que nossa crescente ignorância não se limita a estropiar nossa língua, mas faz
o mesmo com idiomas que consideramos superiores em tudo, como o inglês. Hoje isto
caiu em desuso, mas smoking já foi aqui "smocking" durante muito
tempo. Assim como doping já foi "dopping". Quanto a este, assinale-se
que o som, digamos fechado, do O, em inglês, foi trocado aqui por um som
aberto, é o dópin. O mesmo tipo de fenômeno ocorreu com volley, cuja primeira
vogal em inglês é aberta, mas em brasinglês é fechada e já entrou no português
assim.
No setor de nomes próprios, a vingança é mais
completa. Em primeiro lugar, transformamos os sobrenomes deles em prenomes
nossos e enchemos o País de jeffersons, washingtons, edisons (aliás, em
brasinglês, Edson, como Pelé), lincolns, roosevelts e até mesmo kennedys e
nixons. E não perdoamos os contemporâneos. Não só trocamos o H por E em
Elizabeth, como até hoje há publicações que se referem a Margareth Thatcher, ou
à princesa Margareth. Esse nome nunca teve H no fim, mas aqui é assim não só em
muitos jornais quanto no caso de nossas meninas, como atesta o exemplo da minha
linda e talentosa conterrânea Margareth Menezes. E das Nathalies que assim
foram batizadas em homenagem a Natalie Wood. E dos Phellipes, inspirados no
príncipe Philip, das Daianes da Diane, a lista não acaba.
De maneira semelhante, também alteramos não somente
a pronúncia, mas as regras gramaticais do inglês. Por exemplo, é quase unânime,
entre todos os numerosos militantes do brasinglês, a convicção de que qualquer
plural inglês terminado em S deve ter essa letra precedida de um asterisco.
Acho que é barbada apostar que, em todas as cidades brasileiras de médias para
cima, serão encontrados pelo menos uma placa e cinco cardápios anunciando
"Drink's". É mais chique e até o Galeão, não há muito tempo, tinha
armários (lockers) de aluguel, encimados pelo letreiro "Locker's", o
que fazia os falantes de inglês entender que os armários eram propriedade de um
certo Mr. Locker. No Galeão, aliás, gate (portão) já soou como gay tea (chá
gay) e shuttle service (ponte aérea) como chateau service (o que lá seja isso).
Agora mudou, mas to (para) deu para sair um prolongado tchuu, que, a um ouvido
americano, há de soar como uma onomatopeia de espirro ou partida de
maria-fumaça.
Mas, até mesmo por causa ("por causa",
não, por conta; agora só se diz "por conta", vai ver que vem do
inglês on account of) dessas paralimpíadas, receio que as contraofensivas
nacionais não serão suficientes para neutralizar a subordinação de nossa
cabeça, através do incalculável poder da língua. Acho que, coletivamente,
aspiramos a essa subordinação. Tem sido muito lembrado o complexo de vira-lata
de que falou Nélson Rodrigues. Pois é, é isso mesmo e é também caminho seguro
para sermos vira-latas de verdade.
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