sexta-feira, 27 de abril de 2012

Lembranças Perdidas da Infância

 
Minhas irmãs escreveram um livro em homenagem a nossa mãe, enfatizando momentos difíceis passados, quando se afastou da família paterna que morava em São Paulo e momentos de felicidade com o advento dos oito filhos. O fato da família da minha mãe ser italiana e católica e a família do meu pai protestante causou um racha entre as duas famílias que viveram afastadas por muitos anos.
Quando uma das irmãs autoras mencionou o livro, ainda em fase de rascunho, fiz algumas observações sobre passagens da minha infância, em especial quando fui levado pelo meu pai para ficar algum tempo aos cuidados dos meus avós paternos que moravam em Conservatória. Embora lá estivesse quando criança, de tenra idade, respaldada por depoimentos dos meus irmãos mais velhos ela não confirmou minha passagem pelo vilarejo. Alguns fatos me marcaram nitidamente e estão gravados na minha memória de forma indelével e são lembranças irremovíveis.

Nasci em Campos, no norte fluminense, no ano que iniciou a segunda Guerra Mundial. Quando terminou o conflito, em 1945, estava com seis anos de idade.
Três passagens dessa infância, antes do fim da guerra, recordo-as como se hoje as estivesse vivendo novamente:
- éramos orientados a andar encostados nas paredes dos prédios quando algum avião passasse sobre a cidade, pois poderia haver um bombardeio alemão, embora nunca tivesse ocorrido;
- circulou uma noticia em Campos sobre um submarino alemão que desembarcara dois espiões na praia de Atafona, em São João da Barra, onde enterraram equipamentos de rádio transmissão;
- certa feita, estávamos na chácara, onde moravam meus avós paternos, quando minha avó sai correndo de dentro de casa e grita a noticia que acabara de ouvir no rádio: “Terminou a guerra”! Gastão, meu irmão mais velho, respondeu: eu já sabia desde manhã. Ele tinha 10 anos de idade. Minha avó deu-lhe uma bronca: e você não conta pra ninguém!
Quando relatei para ele esse último fato, Gastão não demonstrou a mínima recordação.

Durante a ditadura Vargas, os quintas colunas eram perseguidos pelo Estado Novo e a ordem de captura era cumprida pela policia política, chefiada pelo famigerado Filinto Muller.
Um amigo de papai, Paulo Leitão, aniversariava e o convidou para tomar um vinho para celebrar a data. Meu pai não bebia e morreu sem beber, mas abrira uma exceção com o amigo na Confeitaria Francesa. O navio brasileiro, Custódio de Melo, fora afundado na costa do nordeste por um submarino alemão, uma das razões da entrada do Brasil na guerra. Um dedo duro, vendo-os fazer um brinde em local público, chamou a policia denunciando-os por estarem comemorando o afundamento do navio. O amigo de papai era integralista e ambos foram presos e despachados para o Rio de Janeiro para serem inquiridos pela policia de Filinto Muller. Até concluírem que meu pai não era integralista - não me lembro por quanto tempo ficara afastado de Campos - no retorno do Rio teve que recomeçar a vida profissional. Esse fato ocorreu ainda antes do fim da guerra. Devido a possíveis dificuldades financeiras do meu pai, não tenho certeza se essa foi a razão, fui levado para Conservatória para ficar algum tempo com meus avós, que tomavam conta de um hotel da família. Da viagem, lembro-me apenas de estar na Estação Pedro II no Rio aguardando o trem para Conservatória.

Agora começa a historia contestada por minha irmã, segundo ela baseada em depoimentos dos meus irmãos mais velhos. Faço questão de frisar que isso aconteceu antes do fim da guerra e, portanto, estava com menos de 6 anos. Penso que deveria ter de 3 a 4 anos no máximo, pois me lembro perfeitamente dos últimos anos antes do fim da guerra em Campos, envolvido com as peraltices e a liberdade que crianças tinham na época, de brincar na rua, na praça, freqüentar as vendas do bairro, sem receio de qualquer espécie.
Cinco fatos me dão a certeza de ter estado em Conservatória com tão pouca idade:
-Do hotel dos meus avós, lembro-me apenas da presença deles e do José Nossar, um sacristão que fora criado pelas minhas tias avós, que também moravam com meus avós no hotel, mas não me lembro delas nessa época;
-Do trem apitando antes de entrar no túnel, na chegada à estação. Eu corria para a janela e ficava esperando meu pai sair da plataforma de embarque para me buscar.  A espera era frustrante, ele não chegava. Corria para meu quarto, deitava na cama e chorava. Lembro que era sempre o anoitecer.
-Do Zé Nossar, rosto gordo e barriga ligeiramente proeminente. Jamais poderia esquecê-lo e posso garantir que nunca mais o vira em vida. Nos fundos do hotel, havia um buraco que devia ter uns 3 a 4 metros de profundidade.  Uma galinha com os pintinhos ciscando no quintal tornou-se meu divertimento sádico: chutava os pintinhos para cair dentro do buraco. Numa dessas, Zé Nossar me flagra e deu-me uma reprimenda inesquecível.
-Do Seu Palmiro. Era um preto velho que estava sempre sentado em uma cadeira na calçada e portava uma vara com uma forquilha na ponta. Sentia medo dele, porém nunca me assustou, acho que era um boa praça. Estava sempre de paletó, talvez azul entre o anil e o marinho.
-De dois acontecimentos em companhia de papai e a participação de algum (uns) irmão (aos), que não posso precisar. Um passeio pelas redondezas da vila, atravessando uma pinguela sobre um riacho, de águas claras.  O outro acontecimento marcante foi uma excursão que fizemos para escalar o morro atrás da estação do trem para fincarmos bandeirolas do Brasil.
Muitos anos depois, fui visitar pela primeira vez meus tios em Conservatória e pude constatar que o túnel, o trem (uma Maria fumaça em exposição) e o morro estavam lá. Apenas errei na localização do hotel, que imaginava em frente à estação, mas era em frente à praça. O riacho, hoje poluído, ainda existe, mas não pude precisar o local da antiga pinguela.
Não me lembro se conversei com meus pais sobre essas passagens, talvez as lembranças não me incomodassem até o momento em que o livro O Céu de Laeta foi publicado.
Dessa curta separação nunca explicada talvez jamais saberei exatamente os motivos.


Agenor Portelli Teixeira Magalhães
Novembro/2011

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