terça-feira, 7 de agosto de 2012

Sinceramente, Cristãos

                    Alegoria e sátira em versos       
                 
                     Autoria de: Winston Churchill Rangel

–Só não chamaram de santa.
Agora, de vagabunda,
Desonrada e perdida
A família fez a festa.
De joelhos, disse a mãe:
Deus não te dê boa hora,
Pois já não és minha filha.

O irmão cuspiu-lhe o rosto
Com a baba grossa de bêbado.
O pai, com a mão estendida,
Mostrou-lhe o olho da rua.
São coisas de bons cristãos.

Com ele foi tudo igual,
Botaram a boca no mundo:
Palhaço, tonto, babaca,
Disse o pai que era batista.
Tapa-buraco, pedreiro,
Disse o irmão macumbeiro
Que aos domingos ia à missa.
A mãe, como toda mãe,
Semeou logo a discórdia:
Será que esse filho é teu?
São coisas de bons cristãos.

Tratados por criminosos,
Não havia crime algum,
Pois só fizeram cumprir
O que mandam os mandamentos:
Crescei e multiplicai-vos
Por amor de um ao outro.
E foram as duas crianças
Morar na beira do rio
Num barracão alugado.

Pra viver, cortaram cana,
Lavaram roupa pra fora.
À noite, por diversão,
Ficavam as duas crianças
Brincando com a criancinha.
Sinceramente Cristãos.

Na mesma velocidade
Em que passam nove luas,
Em que a cobra muda de pele,
Em que a vaca tem cria,
As dores eram verdade
Pelo ventre de Maria...

Ainda ontem crianças,
Agora homem e mulher,
Nos aceiros, noite ainda,
Vão os dois de bicicleta.
No quadro, ela com dores,
Ele nervoso, ao selim.
Cuidado agora, José!
É buraco? Pra direita.
Atoleiro? Quebra à esquerda.
A corrente saiu do eixo,
O suor corre da testa,
Dele e dela, pressa e dor.
Até que enfim o asfalto!

Agora fica mais fácil
Pra consertar a corrente,
Pra ela respirar fundo
Pra beberem um pouco dágua,
Vão parando os dois cristãos.

Agora, já na cidade,
Perguntam daqui, dali,
Onde é o hospital
E recebem por resposta
Um logo ali, por ali,
Que os cristãos falam apressados
Pois é véspera de Natal.
Queijos, vinhos, rabanadas,
Bacalhau de Portugal,
Festa de amigos ocultos,
Presentes distribuídos
Com as crianças do orfanato
–velhas bolas e bonecas,
Num corre-corre danado,
Não podem os bons cristãos
Atender aos seus irmãos
E pensar ao mesmo tempo
Na ceia de logo mais.
Num botequim-padaria
Descansam um pouco as pernas,
Ela come um sanduíche
De ovo frito e acha lindas
As bolhas do guaraná.
Ele com a testa enrugada,
Fica olhando pra fora
Onde passa um cavaquinho
De braço dado com um bêbado.
Na porta pára uma bicha:
–Padeiro, tem pão de ontem?
Quem mandou fazer demais.
E rouba um litro de leite.
Do corre-corre que ocorre
Se aproveita uma mendiga
Pra também roubar um pão.
Ele e ela se assustam,
Mas depois ficam mais calmos
Com o riso do português
Acostumado aos assaltos
Maiores e oficiais.
O portuga é bom cristão.
Com a psicologia
Que aprendeu, não na escola,
Mas com o umbigo no balcão,
Logo é conhecedor
De toda história e dores
E deita sabedoria
–Trata-se de um rebate falso,
Ou então parto sem doire.

No céu de chumbo um rabisco
Seguindo atrás o trovão.
O primeiro pingo cai.
Voltar pra casa não podem.
O padeiro os acode.
E diz com sinceridade
Que pra ficarem uma noite
–Tain lá embaixo o porão.

Ele abraçado com ela
Vão descendo pela escada,
E um forte cheiro de vela
Misturado com cachaça
Esquenta os seus narizes.
Quando a vista se acostuma,
Dão de cara com a bicha
Com seu saquinho de leite,
O bêbado e o cavaquinho,
A puta velha com o pão.
Amedrontados e quietos.
Mas logo cessam os raios,
O vento forte sossega,
A tempestade amaina.
No comércio da cidade
Os cristãos voltam à doideira
Champanhe com guaraná
Melhor bebida não tem.
–Se esqueceu do pó de arroz
Pra empregada lá de casa?
–Na esquina eu consigo
Um sabonete pra ela.
–O tio rico é de quem?
De quem é o tio pobre?
Então pro meu o relógio,
Pro teu um feliz natal.
–Roubaram a minha bolsa!
Seu guarda, é aquela negra!
Numa confusão total
Como só os bons cristãos
Fazem em tempo de Natal.

As horas passam depressa
Pois são filhas dos minutos
Todos feitos de segundos
Que é o tempo que basta
–Pra cobra dar o seu bote,
Pro sapo pular no brejo,
Pro demo piscar um olho,
Pro sino fazer din-don,
Pra agora ser meia-noite.

Na vidraça da janela
Do porão que dá pra rua,
Dois olhos arregalados
De homem olham os foguetes
Que saúdam o nascimento
De Nosso Senhor Jesus.
Uns estouraram, outros choram,
Mas todos por fim se apagam.
Menos um, o mais bonito
De cabeça e cauda grandes.
E o homem olhou pra trás,
Para chamar a mulher...
No que olhou, teve um susto:
Tinha nascido um menino
Que olhava a todos com calma.
Com uns olhos de um assim tão claro
Que iluminavam o porão.
Lá estavam os três reis magos,
Não com ouro, incenso ou mirra.

A bicha negra deu leite,
A puta velha deu pão,
O bêbado a poesia,
José um beijo em Maria.
Sinceramente Cristãos.



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