terça-feira, 7 de agosto de 2012

AULA DE HISTÓRIA:


Texto de Mário Galvão enviado e
digitado por ele no sistema DOS-
VOX ( Braille) em seu computador.


    O “AUMNTO” DOS BONDES É EXPLORAÇÃO!

    A simples vista da pixação no muro da casa em frente irrita minha madrinha, como sempre, ao dar-me a bênção
antes de eu sair para as aulas.

    - Um horror! Esses comunistas emporcalham tudo, metem aí esse mostrengo de  foice e martelo e nem sequer sabem escrever "aumento"!

     —Que-que é comunista, Dona Fluminense de Campos?

    —Uns tipos de cabeças ruins, uns ateus  que bagunçam as famílias, as casas e as cidades. Deviam pôr na cadeia quem suja e quem deixa sujas as paredes.
Mas,  Não importa.

Quem é bom “cidadota” devia mandar limpar, cuidar da casa como nós da nossa.

Desisti de perguntar o que era “cidadota” e saí.  Na  esquina, dei a paradinha para o adeus que ela ficava esperando no portão, miúda figura de preto a ressaltar a alvura das paredes.

    Nossa casa é uma dessas antigas, geminadas, de janelas altas e
delgadas abrindo para a rua, varanda lateral com colunas de capitéis coríntios, estreita e comprida, acompanhando até quase aos fundos do prédio o jardinzinho de bicos-de-papagaio, amas, gérberas e margaridas, com samambaias ao longo da mureta do alpendre e hera
a cobrir todo o muro. Ao lado da torneira de molhar jardim, um cipreste solitário contrasta com as alturas do genipapeiro, dos pés de abio roxo e amarelo e dos abacateiros, no quintal mais ao fundo.

    Dentro da casa a penumbra e o frescor são assegurados pelo pé-direito de cinco metros e pelos longos corredores ligando cômodos imensos, com móveis do século XIX. Nos quartos há cômodas lavradas, altos guarda-roupas com bisotados espelhos ovais nas portas duplas, enormes camas com sólidas cabeceiras e peseiras, como hoje raramente se vê; aliás, não entendo por que Tio Gig sempre dá um risinho maroto  quando fala dessas peseiras, principalmente as das camas de casais, diz que os antigos eram sábios.

    A sala da frente é a minha predileta, escondo-me lá para ler o Tesouro da Juventude, as vezes com um Gibi dentro,  e nessas horas ignoro  os olhares dos senhores barbudos nas paredes, o avô com cara de boa-praça,o bisavô médico, herói da "gripe espanhola", o senador do Império. De vez em quando disfarço, pego um volume da Vida dos
Santos, sabe-se lá quando uma tia vem sem  fazer barulho?
A sala de jantar dava até para uma peladinha. Ha um sofazinho de cada lado, para as sestas de Dona Fluminense, uma depois do almoço, outra depois do jantar ou do lanche, servidos na longa mesa com doze cadeiras austríacas que combinam com o sofá de medalhão mais suas poltronas e as cadeiras de balanço, todas de palhinha.
Há também a cristaleira esculpida que o trisavô trouxe de Angola. Nas paredes temos a Ceia, claro, um quadro com o retrato e a bênção de nosso Santo Padre Pio XII e uma imensa cópia de uma das Madonas de Rafael; com esta eu implico, os olhos dela me fiscalizam por toda parte, parece até o chato do Caneca Amassada, nosso bedel,
ali a vigiar o que a gente faz no pátio;   e eu, que estou aqui apenas a maltraçar o caso da bulha, ainda agorinha,  numa aula tão importante sobre assunto de tão relevante repercussão na cultura e história pátrias, estou que estou vendo Dona Fluminense, muito miudinha em sua cadeirinha de balanço a bordar e a sentenciar:

    - Quando você tiver sua casa, cuide bem dela. As casas são o retrato das cabeças e as cidades são o retrato das casas.

    Pois nesse retrato da cidade que é a nossa casa Dona Fluminense e suas duas filhas embalaram várias levas de capetas batizados - filhos, sobrinhos, netos, bisnetos e agregados, dos quais eu sou o mais moderno. Muitos notáveis cidadãos florestanos dali saíram, criados com desvelo e rigor exemplares, Madrinha mesmo diz sempre:

   - Há os mal educados e os mal aprendidos.

    Sem dúvida. Mas elas sempre ofereceram a melhor educação. Os ensinamentos mais sábios. As idéias mais piedosas. Os princípios mais sólidos e conservadores. Os melhores colégios também, claro.

Porque, saibam  todos:  em Floresta, capital intelectual de nosso Estado, o ensino sempre foi altamente eficaz e moderno. Há excelentes colégios, leigos e religiosos, técnicos, agro-pecuários e de humanidades, como aqui o nosso Liceu, que é o melhor de todos, basta ver que, aforante o Pedro II, ele é o único não sujeito a inspeção federal!

Nossos professores, muito bem preparados e remunerados, ministram à gurizada a ensinação mais atualizada, os conceitos mais avançados, as informações mais precisas e práticas. Educação pra frente é conosco mesmo.

Somos de fato gente ilustrada, nesta cidade. Sem qualquer bairrismo. Os que pensam que São Luiz do Maranhão é a cidade brasileira onde melhor se fala a chamada "última flor do Lácio" é porque nunca estiveram em Floresta, que é onde se fala o melhor português do país - e se escreve também, naturalmente.
Temos vários jornais, meia dúzia de estações de rádio e duas notáveis academias literárias, embora uma delas, rigorosa e exclusivista na seleção, hoje em dia só tenha dois membros, o presidente e o secretário. É igualmente verdadeiro  que, não havendo livrarias, os livros são vendidos em pontas de balcões de papelarias e perfumarias; mas este é um detalhe de somenos importância. Afinal de contas, o que importa é que somos gente ilustrada, bem falante.
Ah, sim, ia me esquecendo: bempensante também. O Senhor Bispo Dom João Maia, nosso guia espiritual e censor, sempre se destaca nas vergastadas contra "esses católicos liberais, vendilhões do templo que eles são", diz nossa professora de religião,  e nas batalhas em defesa da tradição, da família e da propriedade.

Mas, voltando à didática e à propedêutica, ia eu a dizer que, povo culto que somos, nosso ensino está sempre em dia com os avanços técnicos e aberto ás novidades tecnológicas da Humanidade.

    Como não me lembro se já disse, hoje tivemos aula de História, no tempo antes do recreio.
História, a mestra da vida, já dizia o falecido Cícero, em Roma, quarenta anos antes do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. É preciso estudá-la para aprender a não repetir os erros do passado, não é? É isso, pelo menos, o que diz nossa professora, que, além da História, se encarrega também do Catecismo. A gente deve sempre
estar de olho aberto para o futuro, ela fala, e a história ajuda muito.

Hoje mesmo tivemos prova disso. Corre o dia 4 de novembro de 1957. Ia bem a aula de História. A professora discorria sobre a Revolução Francesa e borbulhava grande animosidade, na turma, contra a cara-de-pau da rainha, que mandou o povo, se não tinha pão, comer bolos. "Boa bisca!", comenta Marlene, moreninha linda dos meus pecados, inconfessos até a Monsenhor Arruda, na Catedral, até mesmo a Padre Carmelo, na Igreja do Saco.!

Aula, História, pra quê? Concordei, claro. Aquele pedacinho meio envergonhado de obturação a ouro dissimulada numa brisa de sorriso... aquela beirinha rendada  de sutiã brechada no decote meio aberto da blusa do Liceu... o incrível peso de leveza daquelas mãos no me passar um lápis, um bolinho-de-arroz... aquele olhar de “fica-aí-mas-vem-cá...” Concordo, enfaticamente. Nos meus dezessete anos, discordar, quem haveria de?

     Dona Clotilde está no ponto em que o ministro das Finanças, Messiê Necker, busca levantar fundos para superar a crise econômica que abala o regime. O rei Luís XVI, filho daquele que inventou os móveis estilo Luís XV, eu acho,
anda aflito. Penso: nervoso assim, será que ele fica andando pra-lá-pra-cá, fumando Luís XV?...
Muito interessante. Infelizmente, não conseguimos aprender hoje tudo sobre a Revolução Francesa, o que pode vir a ser uma perda irreparável para nossa formação humanística e profissional.

     Não conseguimos porque sobre a sala, com toda a sua didática e propedêutica tombou um raio vindo diretamente do espaço interes-trelar, como diria nosso professor de geografia.
A porta se abriu com estrondo e Renê Preto entrou correndo na sala, o doido, a gritar.

    - Gente! Gente! A Terra maluqueceu de vez.' Depois de velha resolveu botar ciúmes na lua e danou a dar cria.
Um tal satélite novinho, novinho...

     Alvoroço geral. A professora tenta em vão ressuscitar a ordem.

       - Que é isto, menino?! Comporte-se! Depois, que bobagem é esta?! Assim, puro, interromper a aula
e com uma ninharia dessas!

       - É, sim, Dona Assíria!... Errr... quer dizer... desculpa, Dona Clotilde! Deu dijáojinha no repórter, depois um gringo falando inglês desmentiu, "seu" Olavo disse.

       - Então é mesmo  conversa. Sente-se aí e vamos à aula. Satélite da Terra é a Lua, ora!

       - É não, dona Ass..Clotilde. Indagorinha deu de novo!

    Renê parou junto à mesa dela, os olhos esbugalhados.

    - É. É, sim, professora! É que os russos jogaram um foguete lá pra cima, deu no rádio, e botaram uma bola girando em volta da gente. Ela gira e faz bip-bip. O repórter disse que é o primeiro satélite artificial de nosso planeta, um tal de “esputinique”! Como é  que é isso, hein?!

     - Tolice! Ainda mais coisa de russo, esses comunistas não entendem nada de céu...

     À toa. Reboliço foi pouco. A aula deu de si.
     Foi pena. Não ficamos sabendo se o rei descolou a grana dele, agora só na terça que vem.


Mário Galvão. Texto final em 6 de agosto de 2012, a partir da versão inicial de 1989.





Um comentário:

  1. Lindo texto, professor Mário!... Dizem que a leveza e o humor fazem parte das pessoas inteligentes. Esse seu texto prova isso.
    Também muito bem colocado em tempos que um robô pousa em Marte. Quem ousaria imaginar, antes, essa conquista? O futuro está nas mãos dos sonhos e utopias de pessoas criativas e corajosas, não é mesmo?
    Parabéns, Dr. Mário! Que Deus o abençoe! Bjs.

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