sexta-feira, 8 de junho de 2012

ANJO DA MARQUISE




              Autoria: Agenor Portelli Teixeira Magalhães


0ntem recebi a visita do Cláudio e Irene, nossos melhores amigos. Como todos sabem, fiquei anti-social há um bom tempo e o casal é um dos raros que nos honra com sua visita.
Eles estavam chegando de Paris onde deixaram um rastro de destruição sem precedentes, só visto na tomada da Bastilha. Anteriormente, eles estiveram na Ásia e saíram a tempo de se livrarem do tsunami.
Mostraram as fotografias de Paris, os locais por onde andaram e depois começamos a falar da corrupção. Eta “assuntozinho” inevitável em qualquer roda. Eu e o meu amigo combinamos que não devemos discutir futebol (ele é Flamengo e eu Vasco), nem religião (ele é católico praticante e eu sou livre-pensador), e na política ele votou no Ciro e eu no Garotinho. Em comum nossa repulsa a Lula e sua equipe da fuzarca.
O amigo me procurou para saber o que íamos fazer depois de aposentados. Ele é auditor da receita federal e viaja todo ano para o exterior enquanto o lugar mais longe que alcancei foi uma pousada na Estrada Teresópolis-Friburgo.  Ele propôs, quando aposentarmos, comprar um terreno em Camboinhas e construirmos um bloco de apartamentos. Chamaríamos outros conhecidos para a empreitada. Ponderei que o aforamento e laudêmio na região iría atrapalhar as vendas. Concordou e propôs fazermos então uma pousada. Achei boa idéia, mas discordei quando propôs que vendêssemos depois de posta em funcionamento. Fizemos as contas e achamos que iríamos ficar ricos, isso depois de velhos. Na hora de distribuirmos a receita começou as desavenças, ele achava que devíamos reinvestir em outro negocio e eu achava que devíamos parar por ali, pois a idade avançada não recomendava novas investidas em um ramo com riscos, ainda mais com essa desconfiança do mercado sobre o efeito Lula-Palocci. Não houve consenso e como nossa amizade já tem 50 anos desistimos de ficar ricos.
À noite não consegui conciliar o sono. Achei que tinha exagerado nas criticas aos projetos do meu amigo e fiquei a pensar se não o teria ferido de alguma forma. Havia esquecido a lição de Yancey. Depois de rolar a cabeça no travesseiro por vezes sem fim sentei na cama sobressaltado.
O que me incomodava o sono não eram as divergências com o meu amigo, pois me lembrei que durante a manhã, no trabalho, uma colega me pedira para ajudá-la a resolver um problema muito sério na sua rua. Começou apelando aos meus brios de cidadão:
- “O senhor que é entendido em laudêmio, pode me ajudar a resolver o problema dos mendigos da minha rua. Eles ficam na calçada do Banco Itaú ocupando todo o espaço, brigam, discutem, fazem sexo e necessidades fisiológicas ali mesmo, sem que o poder público resolva esse grave problema social”.

Ultimamente ela me ouvia falar muito ao telefone sobre laudêmio e concluiu que problemas sócio-econômicos eram comigo mesmo. Na verdade eu já tinha tido uma boa experiência com mendigos. No bairro do Vital Brasil, onde resido, os mendigos ocupavam a praça, faziam algazarra, impedindo que as crianças usufruíssem equipamentos de lazer. Moradores me procuraram para se queixar, pois os mendigos dormiam nos bancos e ali mantinham relações sexuais.
Aceitei a incumbência dos moradores e tomei atitude. Cheguei lá na praça e com autoridade dei um ultimato: - vocês tem meia-hora para juntar suas tralhas e sumirem do bairro. Vão para a Praça de Icaraí, do Ingá, campo de São Bento, o raio que os parta, mas aqui não quero vê-los mais. Não contestaram e fui embora. À noite, retornando do trabalho, saltei do ônibus na parada da praça e fui verificar o resultado. Não havia mais nenhum mendigo.  E assim foram os dias que se sucederam até que numa caminhada que fiz pelo bairro ouvi vozes embaixo da ponte do canal. Fui verificar, pensando que eram operários da prefeitura fazendo a limpeza do canal, e encontrei os cinco mendigos morando embaixo da ponte. E ainda me acenaram com as mãos.

Com essa experiência, e lembrando que antigamente mendigos foram jogados no rio da Guarda, respondi à colega:
-“Não tem jeito para mendigo, ninguém consegue resolver esse problema. Agora estão botando fogo em mendigo”.

Uma centelha fez-me sentar na cama, e me questionei se àquela hora alguém não estaria prestes a tocar fogo nos mendigos mencionados pela colega.
Sem que Heloisa percebesse, levantei-me, vesti-me rapidamente, peguei o carro e toquei para a Rua Gavião Peixoto. Eram cerca de 2 horas da manhã.
Estavam todos lá, os mendigos do Banco Itaú. Apesar do calor sufocante, eles estavam envoltos em trapos esfarrapados e mal cheirosos. Fiquei a pensar por que eles sempre escolhem as marquises dos Bancos. Observei que na calçada do Unibanco, do Bradesco, da Caixa Econômica estavam mais moradores de rua dormindo. Por que os gerentes dos bancos não os expulsavam? Seria uma forma de se redimirem dos seus altos lucros propiciados pela política daquele a quem chamo de cabo Anselmo do PT?
Fiquei ali de plantão, para não deixar que nada acontecesse àquele bando. O cheiro era ruim, causado pelo suor gorduroso oxidado de pele macilenta e pela urina que empestavam o ar. Pisei em alguma coisa pastosa e exalou um cheiro insuportável. Quanto mais limpava a sola do sapato na quina do meio-fio mais fedia. Nada fede tanto quanto merda de mendigo. Arreh. Soltei um palavrão.
De repente, um mendigo acordou e me viu. Olhando-me desconfiado, cutucou o companheiro do lado que também ergueu a cabeça e, após alguns segundos, perguntou:
- O que você quer?
-Sem saber o que responder, disse:
-Sou o Anjo da Marquise.
Mais alguns instantes de silencio e pareceu-me que ficaram tranqüilos e recostaram as cabeças um no outro e entraram num sono profundo dos justos.
Já eram cinco horas da manhã e o dia começava a clarear. Assim que a visibilidade ficou patente, achei que a minha vigília poderia ser suspensa. Cheguei em casa e fui direto para o computador escrever, com uma idéia fixa: Anjo da Marquise. De onde meu subconsciente havia tirado aquilo? Afinal quem são os anjos da marquise? Onde eu teria ouvido isso?
Acordei suando, meio aterrorizado com aquele sonho sobre moradores de rua. Vesti-me rápido. Peguei o carro e cheguei em Icaraí.  Infelizmente não tive tempo de evitar que Leandro da Silva Águas, de 21 anos, fosse incendiado por outros moradores de rua em briga por espaço para dormir.

Junho/2008

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