quinta-feira, 22 de março de 2012

Memórias Musicais

Texto enviado a Lucia Marina pelo correio, por Celia Portelli Magalhães


 
       Alguns meses antes de morrer, mamãe, num momento de irritação, desabafou para mim:
  - Meu grande erro na vida foi ter casado, caso contrário teria sido uma grande cantora lírica!
       Achei interessante essa sua colocação, sem levar muita fé nos seus pendores operísticos e no seu instrumento vocal.
       Vira e mexe, esse desabafo dela vem a minha mente. Pode-se dizer, sem medo de errar, que mamãe morreu feliz, morreu cantando. Após uma exibição do Coral do SESC, sua artéria abdominal se rompeu, talvez pelo esforço físico da apresentação.  Desmaiou e foi se esvaindo numa hemorragia incontrolável, sem ter tido a visão,  a consciencia e a dor da morte. Seu funeral foi cantado pelos corais do Liceu e do SESC, com direito à sinfonia de pardais, coro e solo de anjos e arcanjos.
        Sempre pensei em escrever uma crônica em torno daquela sentença de mamãe.
        Depois de terminada a educação de oito filhos, tarefa exaustiva, ela se casou com o canto, definitivamente. Viveu a sua plenitude possível “com raro esplendor”, ao ponto do mundo de papai passar a girar em torno daquele clima mágico, acompanhando-a nas suas apresentações, excursões, se enturmando com os cantores e assumindo a condição de “padrinho” do Coral.
        Algum dos filhos herdou essa paixão pela música?
        Diante dessa pergunta, ouço sons de realejo e saraus na minha infância. São sons amortecidos e vagas vozes, perdidos há tantos anos, que começam a crescer de intensidade trazendo muitas lembranças.
       Vejo vovó Emília sentada ao piano tocando o seu variado repertório clássico: notas e acordes, mas não há vozes. É um piano solitário, sem tenor ou soprano a acompanhá-lo.
      Vovô não era nada musical. Além disso, era de temperamento impaciente para se colocar imóvel diante de um rádio ou uma vitrola e ouvir enlevado uma música. Só abria uma exceção para a Cristina Maristani, cantora da sua época e que só cantava uma música. Bastava o locutor de rádio aninciar a senhorita Maristani e seu único número, “ Quando lá no céu, surgir uma peregrina flor...”, para o nosso avô largar tudo e vir numa desabalada carreira e ouvir a melodia até o seu final, com se estivesse num “transe”. Havia algo de sexual ou platônico em relação à cantora. Talvez tivesse visto alguma fotografia da “diva” e tivesse desenvolvido uma paixão fantasiosa por ela.
     Papai começou por iniciativa própria tocando clarineta. Lembro-me das suas promeiras serenatas com: “Caprichos do destino”, “ E o destino desfolhou”, - de Gastão Lamounier, “Saudades do Matão”, completando com os sucessos musicais da época, que não passavam de dois: “ cai a tarde tristonha e serena...” e a clarineta do “ velho ” chorava copiosamente. Fechando suas apresentações, era quase certa a modinha: “ Em você tudo é encantamento... Você traduz sonhos de luz...”
     Com esse pequeno repertório, ele  dava por encerrada a seresta, sem que houvesse um cantor a acompanhá-lo.
      Depois de dominar bem as citadas músicas, comprou  um saxofone vistoso, só para humilhar seus parceiros, transferindo a clarineta para o Gastão. Com o “sax”, seu repertório musical não se expandiu e, em pouco tempo, ele deu por encerradas suas incursões no mundo mágico da música.
       Gastão, logo, se destacou como um exímio clarinetista. Sem jamais ter cantado o “ Ébrio” e a “Patativa”  de Vicente Celestino, parecia apresentar futuro nos seus solos de clarineta. Mas parou. Parou por quê??
       Como Gastão aparentava um futuro promissor, papai se entusiasmou muito e me deu um violino de presente. Na primeira aula, o professor perdeu a paciência comigo:
        -  Pode parar, menino! Definitivamente você não tem jeito nenhum para esse instrumento. Vai sacudir um chocalho bem distante de mim!
      No dia seguinte, o Agenor herdou o violino. E o Paulo, uma gaita.
     Vovó, inconformada, profetizou para papai : ela me via nos seus sonhos premonitórios como um grande concertista internacional. A platéia do Scala de Milão me aplaudindo de pé.
   Papai foi na onda, comprou um luxuoso piano de cauda – à altura do meu talento – matriculando-me nas aulas de Dona Clarice, por onde penei por seis anos.
      Paralelamente, o Agenor ia em “lua-de-mel” com a filha do Fenelon, seu professor de violino. Aula mesmo que era bom, nada! Lá ia o Agenor toda noite com aquela enorme caixa, maior do que ele, e estacionávamos na Agência Santana, onde ficávamos comprando figurinhas de artistas de cinema. Do violino nunca saiu uma nota sequer, mas em compensação, o mano se tornou o maior “expert” em galãs e estrelas de Hollywood.
     Da gaita do Paulo não saía nenhum som harmônico.
     Aposentei-me do piano sem conhecer os píncaros da glória para confirmar as profecias da minha avó.
     Áurea herdou o piano, mas sem o meu “talento”, também não foi muito longe.
    Como não pude acompanhar o desenvolvimento musical dos irmãos menores – Célia, Vera e Renato, acho que em família consegui bater o recorde em insistência musical.
      Lá pelos dezesseis anos de idade, soltava eu a voz, já sem piano mesmo. Principalmente, na Igreja Adventista, onde ousava disputar com Alcino Tavares, em duo de tenores. Talvez para impressionar sua filha.
      Alcino se postava junto à porta direita e de lá soltava seu vozeirão, no seu habitual exercício de “ exibicionismo” . Para superá-lo na disputa, do lado oposto, eu soltava o “meu berro” tentando abafá-lo, tendo ao meu lado, como reforço, o Agenor e o Paulo.
      Minha ida para Niterói foi muito profícua nessas artes líricas. Num universo mais vasto, meu repertório se ampliou bastante. Ao lado de outros estudantes, mais vividos do que eu, meu repertório aprimorou-se consideravelmente: Herivelto Martins em “Barracão de zinco,/ sem telhado,/ sem pintura/ lá no morro...”. Lupicínio Rodrigues, Pixinguinha, Dolores Duran e a predileta dos meus companheiros de pensão: “Minha vida era um palco iluminado./ eu vivia vestido de dourado...”
      Descobríamos  a Lapa do Rio de Janeiro, com seus mistérios, encantos e canções: Nelson Gonçalves, Lamartine Babo, Ataulfo Alves, Adelino Moreira, Noel Rosa, Antônio Maria e Cartola faziam o meu repertório: “Ainda é cedo amor,/ mal começaste a conhecer a vida...”
     Quantas madrugadas não viramos em serestas? Incontáveis!
    Nas minhas vindas a Campos, procurava repassar minhas últimas descobertas musicais para mamãe. Só que o “virtuosismo”  dela não me acompanhava bem: atravessava a música a todo instante, sempre fora do ritmo e do compasso, desafinando nos sustenidos e bemóis.
   Enquanto isso, o Agenor, em Grussaí, resolvia desencantar. Ao invés de soltar a voz, organizava suas serestas com seus cantores improvisados, na tentativa de sensibilizar gentis senhoritas com sua música preferida: “vento que balança as faias do coqueiro,/ vento que encrespa as ondas do mar...”
    Não levava muita fé nos dotes líricos do Agenor. Pelo menos, naquela época, eu já dominava um repertório mais ousado: “ Queixo-me às rosas,/ mas... que bobagem!/ as rosas não falam,/ simplesmente as rosas exalam/ o perfume que roubam de ti...”
   Em Niterói, recebia agora a influência  do bolero. Com a alma inundada de latinidade via Trini Lopez, Trio Los Panchos e com outros tantos trios, ia revelando o talento de cantor: “ “Ao som desse bolero...”
   Extravasando emoções em “ Maria Helena és tu/ a minha inspiração...”, ou em “ Aqueles ojos verdes/ tranqüilos, serenos...”, ou “La barca, el relojio...”
     Há pouco tempo atrás, ainda fiz uma apresentação solo de Guantanamera que deixou o Rogério perplexo com meus dotes canoros.
    No retorno a Campos,  embarquei na nova fase da música popular brasileira com Vinícios, Tom Jobim, Caetano Veloso, mas naquela época os compromissos eram tantos que a voz foi ficando mais distante até desaparecer.
    No fim da vida, Paulo, enfim,  desencantou. Abandonou de vez sua filarmônica de boca, empunhando uma “ viola enluarada...” e com “ mão, violão, canção e espada...” despertou seu potencial até então adormecido, tendo se especializado em “sambas em uma corda só”. Haviam dado para ele o instrumento errado – a gaita.
   Quis seguir o seu exemplo. Comprei um teclado e, misteriosamente, como se algo invisível comandasse os meus dedos já enferrujados, foi saindo uma música que não era do meu repertório antigo, o que reconheci de imediato: “ Não há, ó gente, ó não,/ luar como esse do sertão.../ Oh, que saudade / do luar da minha terra...”
   Chorei de felicidade. Pensei que era mamãe, que lá do céu, tocava por mim.
Impressionado com o fenômeno, comprei um manual de teclado e algumas partituras de músicas que tocava na adolescência. Não saiu nada.
   Aposentei o instrumento, deixando-o como herança para a minha neta, Ana Luíza.   


2 comentários:

  1. À esta leitura, Celia Magalhães Portelli, devo agradecimentos a você por lembrar dos Correios que a trouxe às minhas mãos e me deliciaram os olhos enternecendo meu coração.
    Além disso, me emocionu o seu gesto de fratenal orgulho que a levou a buscar, lá no fundo de seu baú de recordações, estas saborosas e inesquecíveis MEMORIAS MUSICAIS, onde o nosso Patriarca Luiz, nos retrata o quão sólida, alegre e eclética era o CLÃ DOS PORTELLI MAGALHÃES. OBRIGADA AOS DOIS POR ESTA PÉROLA!

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  2. Conheci muito o Gastão Lamounier. Ele era namorado da minha segunda sogra, Nilza Calazans Digiácomo. Ele tinha o Clube do Chiado, no Leme, onde mantinha uma coleção invejável de discos de vinil (daí o chiado).
    Fui muitas vezes a festas por ele organizadas nesse Clube.
    Julieta

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