sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Eça de Queiroz no Divã do Freud?





Texto escrito por Reinaldo Paes Barreto, Jornal do Brasil, Online, RIO DE JANEIRO Colaboração de Eusébio Galvão Queirós.

 Se Eça de Queiroz fosse vivo hoje o que teria mudado nos seus romances e na sua vida pessoal? Tentemos uma aproximação. Eça nasceu num vilarejo de pescadores de sardinha e carapau (um peixe briguento, que puxa a vara para os lados), a Póvoa do Varzim, na remota lua em sagitário de 25 de novembro de 1845.
Um menino que deveria ter crescido como tantos do seu geotempo, provinciano e sonhador. No entanto, o magistrado José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, seu pai, registrou-o no distrito vizinho, Vila do Conde, como seu filho, mas de mãe ignota. Que na verdade, era uma órfã, Carolina Augusta Pereira de Eça.

Ou seja, infância sofrida, humilhações, perguntas sem respostas. Pode-se imaginar o que foi para Eça ser sabido como filho ilegítimo por uma sociedade intolerante, agrária e carola do interior de Portugal na primeira metade do século 19. Resultado: toda a sua densa produção literária sinaliza a necessidade de realizar a catarse dessa infância infeliz.
De que forma? Primeiro, pelo silêncio sobre esses seus primeiros anos; segundo, pela constância com que dá endereço a todas as famílias de seus personagens e, terceiro, desenvolvendo uma misoginia que transferiu para todas as suas criações femininas uma acentuada deformação de caráter. O que variava era o grau e a forma da transgressão: adultério, adultério com incesto, chantagem, rancor da humanidade, submissão total à Igreja, por aí.

Primeira premissa (silêncio sobre a infância). Eça só começa a falar de si a partir de Coimbra. Ali se forja o futuro escritor realista com tensões de sociólogo que, caso escrevesse em francês, estaria à altura de Zola e Balzac, ou de Dickens, em inglês mas que teve que burilar a última flor do Lácio para poder exprimir toda a dor e a revolta de ver o Portugal que podia ter sido e não foi, se é permitido clonar Bandeira.

Segunda premissa: a necessidade de superar essa ausência de uma organização familiar com nome e endereço, que lhe foi negada no berço, materializou-se quem sabe? Na sua obsessão de situar fisicamente os seus personagens em residências senhoriais, sede de uma dinastia ou estirpe que se distingue das demais pelo aspecto, pelo entorno e pela capacidade de produzir, metaforicamente, sombra e luz.
Veja-se a descrição do Ramalhete, solar de Os Maias, a sua obra-prima:
.. sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas janelas de ferro no primeiro andar e o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação dos tempos da Sra. D. Maria I; com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de jesuítas. No entanto, as suas paredes foram fatais àquela antiga família da Beira, tão rica e tão infeliz... .

Os exemplos se multiplicam e se alteram conforme o destino de seus moradores: são diferentes vidas as vidas dentro da Ilustre Casa de Ramires , do 202 dos Champs-Élysées e de Tormes , por exemplo para ficarmos apenas nas residências-personagens que compõem a estrutura de tijolo e telha que sustenta a base de ficção a partir da qual se desenrola o enredo dos seus romances.

A terceira premissa se expressa, nitidamente, por aquilo que escreveu Camilo Castelo Branco: não há em seus romances uma única mulher honesta!  Nem nos dele, diria um eceano. Mas é fato que enquanto o autor de Amor de perdição mostrava-se compreensivo e solidário com o pecado feminino, porque entendia que a sociedade de seu país e de seu tempo privava a mulher de liberdade para se desenvolver e caminhar o seu caminho a partir da razão, permitindo-lhe apenas o uso da emoção, Eça as colocava num Parnaso às avessas. E de lá elas só desciam pelas tranças de Julieta ou pela escada que vai dar na alcova.
As três figuras centrais do seu arquétipo feminino, por exemplo, são Amélia (O crime do padre Amaro), Luísa (O primo Basílio) na categoria burguesinhas românticas, do interior
ou da capital , entediadas, que se casaram um pouco no ar e cujas vidas não tinham foco. Ambas, Amélia e Luísa, foram elaboradas como figuras portadoras de culpa e foram castigadas com a morte pois precisavam se libertar do estigma do adultério. Já Maria Eduarda, a mais chocante e mais inocente das três pecadoras, foi punida com menos rigor. Sendo isenta de culpa no incesto, não morre como as outras, mas parte para uma vida desconhecida toda vestida de negro, numa metáfora clara de que sua vida será como um luto eterno. No romance (Os Maias) ela ocupa a primeira fila do pecado; mas deixa espaço para a Maria Monfort e a condessa de Gouvarinho, lobas menores.

Finalizemos pelo começo: se Eça de Queiroz fosse vivo hoje o que teria mudado nos seus romances e na sua vida pessoal?

Nos arriscamos a duas certezas , pelo menos. Primeira, teria feito psicanálise muito tempo e resolvido o seu problema com as mulheres. Como seria o comportamento das Ameliazinhas, Luísas, Marias Eduardas, Titi etc, só Deus é capaz de dizer. Segunda: teria aderido incondicionalmente ao computador. Por quê? Ora, um obsessivo da linguagem, um escritor que revia de pé e fumando pelo menos 25 vezes cada parágrafo de seus textos, quando descobrisse no Word o autocorretor iria à loucura... E de quebra, teria dois celulares para conversar com os amigos...

Reinaldo Paes Barreto é colunista mensal de vinhos da revista 'Domingo' e colaborador literário do Jornal do Brasil.

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