segunda-feira, 15 de outubro de 2012

CRÔNICA DE UM ANIVERSÁRIO



 Texto escrito por Luiz Magalhães

        Repentinamente me lembro que hoje é dia de meu aniversário, e eu aqui em casa sozinho, sem comemoração alguma, sem nenhum amigo para me cumprimentar. Ninguém me telefona, esqueceram de mim, um vazio total. Da sala vejo o sol iluminando a água da piscina. Os cravos floridos balançam malemolentes sob o efeito da brisa leve e dos raios solares. Os beija-flores, já meus amigos, disputam o líquido açucarado nas garrafinhas suspensas na varanda. Meu entusiasmo está em baixa. Eia! E a exuberância devastadora e proliferadora da vida que tanto falo? Onde está ela nessa hora? E a “vitalogia”, Arlete Sendra, como é mesma? Será que perdi o “animus”, Arlete?
        Essa angústia de tempo que corre impiedosamente deixando a gente para trás... O telefone toca e interrompe essa minha reflexão. É Patrícia me desejando felicidades. Já está na casa nova e me dá notícias do Felipe que agora só quer saber de rua. Está enturmado com os garotos da vizinhança. Todo feliz. A vida é isso... A vida é criança.
        Recordo das palavras do Alvarenga, um belo negro, oleiro pobre, e meu filósofo de botequim: “Professor, de vez em quando a gente precisa se sentir rei. Dono do mundo. Tiro sistematicamente um dia no mês para viver como rei...” É o Alvarenga está certo, concluo.
        Essa evocação fez com que meu olhar voltasse para a adega em direção a uma garrafa: Vigna Reale. Aí está o recado do Alvarenga para mim. É um chianti clássico, vendemia 1993, DOCG, com o selo do galo preto para torná-lo inconfundível, imbottigliato da Casa Reale. Antes de abri-lo, lembro da recomendação de Heitor F. de Souza, antes de partir para Cabo Verde, em torno de um Tenuta Campinoti, chianti da Família Bartali Gambassi, que degustamos na sua residência no Jardim Botânico do RJ: “O vinho é para ser amado. Para amá-lo é preciso ver a cor, a cristalinidade, a seguir o aroma, o sabor, sentir o corpo, e finalmente ouvi-lo. Nada mais parecido com o vinho do que a mulher”. Para acompanhá-lo, lanço mão de um goose Patê aux truffres – Deustschland da Federal Rebublic of Germany, para relembrar numa combinação perfeita o Sacro Império-romano-germânico-austro-húngaro.
        Entre o vermelho rubi e o bouquet forte dos tradicionais vinhos italianos, numa alquimia equilibrada com a textura finíssima do Patê, que me fez lembrar das palavras de Frei Beto: “Comer como um frade nas suas divinas receitas para quem sabe, porque tem um céu na boca”.
        Lá ia eu nessa relação amorosa, já pela metade da garrafa, quando toca a campainha. Vou atender a quem bate à porta. Da varanda, cinco metros de distância do portão gradeado, sou surpreendido por uma figura feminina esplendorosa. Negra, esbelta, graciosa, num shortinho de jeans, camiseta pólo casco de ovo deixando transparecer seios firmes, provocantes, barriguinha de fora, cabelos afro-encaracolados num tom vermelho angelim, pernas bem torneadas que me fizeram de imediato recordar o monumental par de pernas de Cyd Charisse, estrela cinematográfica e dançarina dos anos cinqüenta. Formas completas que nem o cinzel de Rodin seria capaz de extrair do mármore ou do granito-negro. Acenou para mim, delicada e sorridente para que eu me aproximasse. Avancei alguns passos e me mantive estático a uns três metros dela a fim de observar melhor. Para sentir toda a sua magnitude. Mal podia acreditar no que estava vendo. Seria uma alucinação minha ou um delírio etílico? Seria ela a Rainha de Sabá ou uma Princesa Etíope? Esfreguei o nariz, puxei as orelhas, belisquei o braço para constatar que não era um sonho. Era mulher para ninguém botar defeito.
        Namorei-a a distância com olhar cobiçoso. Percebi que meu encantamento tornava a alma dela leve e feliz. O belo me causa prazer e nisso reside à essência da arte. Toda a minha área sensorial estava aflorada. Senti nela cheiro de cedro do Líbano. A distância exata em que me coloquei permitia um enquadramento fotográfico perfeito e ângulos singulares daquele conjunto harmonioso de formas. Caminhei três passos para a direita a fim de observá-la de perfil e dorso: silhueta definida e ondulante. Perfeição total de imagem. Nada a acrescentar e nem retirar. Como a natureza podia ter produzido esse exemplar de fêmea? Recorri mentalmente ao meu arquivo mental de memórias fotográficas na busca de uma mulher que pudesse superá-la e não encontrei nada igual. Diante da minha perplexidade, a vaidade feminina dela aflorava com tanta intensidade tornando-a mais divina e encantadora. Sorria insinuativa consciente do deslumbramento que me causava. Aproximei-me dela parando a um passo de distância para um exame mais apurado. O tom da pele ao brilho do sol se assemelhava à ardósia negra. Continuava simpática, generosa e amável ao semblante, à curta distância. A minha mudez e o olhar penetrante tão próximo, por frações de segundo criavam uma ligeira insegurança nela, mas que se recompunha rapidamente por meio de um sorriso amplo e convidativo. Por cima da blusa decotada, um colar fossilizado em âmbar, brincos em lápis-lazúli, unhas vermelhas, anel e pulseira de prata, maquiagem ligeiramente exótica formando um conjunto harmonioso, sublinhando todo o seu mistério. Seus lábios ensaiavam palavras que não saíam, talvez querendo me oferecer o céu. Minha situação estática e de êxtase deixavam-na ligeiramente inibida. Não poderia avaliar ela, o que se passava dentro do meu cérebro. Diante da minha imobilidade, silêncio e perplexidade, jamais poderia conceber que naquele momento eu estava com os olhos nela e o pensamento voltado para Goethe: “Maravilhar-se é o ponto mais alto que o homem pode atingir. E se o fenômeno primeiro o deixou extasiado, que se alegre. Mais alto não poderá subir”. Só você mesmo Goethe para entender dessas coisas!
Essa reflexão em torno do escritor e filósofo me levantou uma dúvida: será ela uma dádiva dos deuses? Meu presente vindo lá dos céus? Aquela estrela cadente que vi ontem à noite poderia ser um aviso, uma “profecia celestina” de que algo aconteceria. Quem sabe? Um presente dos deuses dado de bandeja, assim sem eu esperar? Acho que nasci com “a bunda virada para a lua”.
Pode ter sido uma obra dos meus santos padroeiros, Santo Agostinho e Santa Mônica numa conjugação de forças edipianas que somente os Imortais Fernando da Silveira e José Cunha Filho possam me explicar.
        Saí do meu estado de abstração e fui ao concreto.
        _ Pois não doçura, o que você deseja? Fala que seus desejos serão prontamente realizados, Princesa de Ébano!
        _ O senhor não está precisando de uma empregada doméstica? É que eu preciso ajudar a minha mãe que está num tremendo sufoco – disse graciosa e delicadamente, deixando transparecer no falsete da sua voz a natureza da sua sexualidade.
        _ Com esse rosto e esse corpo, meu caro mancebo, esqueça essa história de empregada doméstica! Se mande para o Rio ou São Paulo. Procure um “Boite gay” ou uma agência de modelos que seu futuro está garantido! Procure o Faustão ou o Sílvio Santos que você vai fazer sucesso!
        _ O senhor acha mesmo???
        _ Tenho certeza absoluta!
        E lá foi “ela” toda feliz, rebolando pra lá e pra cá.


 Texto enviado por Luiz Magalhães para Talita Batista por email.

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